Peixe Mulher
Também apreciava carapau sêco guizado com tomate, cebola e jindungo, muito molho onde mergulhava bolinhas de pirão que tecia com os dedos lambuzados. E aqui terminava a sua capacidade inicial de comer peixe, lá na serra do Quipeio onde nasceu.
Depois que se mudou para o Huambo, a sua convivência com Mestre Estevão Cozinheiro foi domesticando-o. Já comia corvina fresca, mas detestava as sardinhas, por demasiado espinhosas. Ainda eramos garotos quando o João se animou a comer peixe fresco, que chegava de Benguela no combóio mala, uma vez por semana. Era trazido pelo sr. Abrantes, o nosso peixeiro ambulante, que viajava expressamente a Benguela, para conseguir peixe fresco congelado e assim satisfazer a clientela. O serviço rápido a domicílio tinha lugar quando o combóio ascendente passava junto à casa de cada cliente. O peixeiro, apoiado na barra de ferro que fazia as vezes de porta do vagon onde viajava, tomava balanço e curvado para o exterior, deixava cair a bolsa com o peixe, que rolava no chão até parar. Depois, era só recolhê-la, ao lado da via.
Desde que o combóio chegou ao planalto o sr. Abrantes inventou esta solução pratica para abastecer as famílias ao longo da linha. Na hora de passar o combóio-mala, mal se ouvia, ao longe, o apito, floreado e repetido, avisando da chegada, toda a malta gritava «peixe, peixe... combóio, combóio» e corriamos até nos colocarmos junto à via, numa zona de bastante capim que amortecesse a queda do saco de peixe. Era a festa da semana. Mal o saco partia das mãos do gordo peixeiro, a miudagem celebrava com mais gritos e correrias, a agarrar a encomenda, para entregá-la ao Mestre Estevão que, de longe, supervisava a operação.
Uma vez na posse do bolso, o cozinheiro desatava os nós do cordão, abria o saco e era capaz de reconhecer, à primeira vista e pela cara, de que peixe se tratava. Eufórico com o seu achado, anunciava: «corvina, pescada, cachucho, atum, pungo», enfim, o que fora. Mas, às vezes, em vez de peixe inteiro, vinha peixe cortado às postas e sem cabeça. Neste caso o Estevão não identificava... só dizia... «peixe», deixando a intriga connosco.
Por mera casualidade, curioseando livros, o João Dumbo encontrou no gordo dicionário ilustrado, a figura de uma kianda ou sereia, cujos longos cabelos meio lhe cobriam os seios. Estava sentada sobre pedras e via-se em primeiro plano o seu rabo de peixe. Perplexo, veio perguntar-me se aquilo era mesmo de verdade. Quando lhe respondi que sim, que era mesmo de verdade e que existiam as sereias, declarou logo ali, solenemente, que daí em diante, nunca mais ele voltaria a comer peixe sem ver-lhe a cabeça. – «Afinal – dizia no seu português atrapalhado – tem os pessoa que é os peixe? Não, pôssa. Eu não como mais os peixe que afinal é a mulher». Intrigado e supersticioso, adiantava: - «...assim, se eu não vejo mesmo os cabeça dele, não, eu não como. Sinão, como é que sei se é os peixe ou as pessoa?».
Daí em diante começou a investigar acerca de peixes. Aos poucos foi reunindo dados e ouviu, atentamente, as estórias do velho Kateia, que trabalhara como contratado nas pescarias da Baía Farta e também no Bom Jesus. Foi o Kateia que lhe confirmou a existência do peixe-mulher. Mais. Até lhe garantiu que tinha visto no rio Dande, um peixe mulher. E não era fantasia. Nalguns rios de Angola existe ou existia o manatim, um tipo de «peixe-boi» africano ou mulher-peixe.
Na realidade o manatim ou vaca-marinha é um mamífero aquático que vive nos rios africanos desde o Senegal até ao sul de Angola. Talvez esteja extinto, mas antes aparecia com certa frequência nos rios Longa e Cuanza, que delimitam o Parque Nacional da Quissama, perto de Luanda. Os primeiros exemplares desta família de mamíferos, denunciados pelos relatos de marinheiros, foram avistados nas costas da Venezuela, Guianas e N.E. do Brasil onde também é conhecido como peixe-boi, vaca marinha ou... mulher-peixe. Nalgumas regiões é conhecido pelo nome de «gugong».
O manatim é uma criatura nocturna, cuja cabeça lembra a foca. Possue focinho notoriamente grande e boca notoriamente pequena. Tem os membros anteriores transformados em nadadeiras, carece de membros posteriores e tem cauda horizontal em forma de remo não fendido no meio, identica à cauda dos golfinhos. Família dos manatídeos, pertence à classe dos sirenídeos. A fêmea de peixe-boi nada de costas, segurando, carinhosamente, a sua cria, junto ao peito, com as barbatanas e emitindo gritos de lamento. Admite-se que seria este grito o que fascinou marinheiros que o identificaram como o «canto da sereia». E é bem possível que tenha sido a postura humana destes animais o que deu origem ao mito das sereias.
Em 1992 uma equipa de pesquizadores da União Internacional da Conservação da Natureza disse, no seu relatório, que o manatim africano já não existia nos rios de Angola. Contudo, o naturista sul africano Roger Ballard-Tremeer, que viveu algum tempo em Angola, recusou-se a acreditar nisso e reuniu, nos últimos anos, provas fisicas para demonstar que o manatim africano está bem vivo nos sistemas fluviais do Cuanza e do Bengo. A Fundação do Parque da Quissama, empenhada em preservar as espécies, tem como programa o repovoamento da bela reserva que já existiu ao sul de Luanda. Por isso sobrevive a esperança de que o mítico canto da sereia se volte a ouvir em certas noites misteriosas de África.
Fazedora de mitos, a sereia ainda exerce grande fascínio e temor. Extinto ou não, o manatim sobrevive na fantasia do meu amigo João Dumbo, como o peixe-mulher ou mulher-peixe. Por isso, nem agora, depois de velho, está abalada a sua decisão de nunca comer peixe sem primeiro lhe espreitar a cara... - «Sinão, como é que eu sei se é os peixe ou os pessoa?».
AUXILIAR DE LEITURA:
Combóio Mala – Designação do combóio que transportava as malas do correio. Contratado – Escravo. Eufemismo com que se disfarçava a moderna escravatura na era salazarista. Jindungo – Piri-piri. Pimenta de Caiena. Pimentinho muito picante, que se usa como condimento imprescindivel, na culinária angolana. Pirão – Comida tradiconal angolana. Funji. Espécie de papa, preparada com fuba ou farinha de milho ou de mandioca (neste caso fuba de bombó). * Jornalista angolano - Excerto do livro inédito «Manamafuika» * 2002-11-29