23.6.05

Peixe Mulher

João Dumbo é o protótipo da gente do interior que nunca viu o mar e destila preconceitos em relação aos peixes, apesar de que adorava comer o pirão com conduto de carapau seco, assado na braza.Com movimentos calculados retirava do fogo, com as mãos, o peixe quente que partia em lasquinhas, uma de cada vez, para fruir desse sabor entre ácido e salgado que o pirão de milho adocicava.
Também apreciava carapau sêco guizado com tomate, cebola e jindungo, muito molho onde mergulhava bolinhas de pirão que tecia com os dedos lambuzados. E aqui terminava a sua capacidade inicial de comer peixe, lá na serra do Quipeio onde nasceu.
Depois que se mudou para o Huambo, a sua convivência com Mestre Estevão Cozinheiro foi domesticando-o. Já comia corvina fresca, mas detestava as sardinhas, por demasiado espinhosas. Ainda eramos garotos quando o João se animou a comer peixe fresco, que chegava de Benguela no combóio mala, uma vez por semana. Era trazido pelo sr. Abrantes, o nosso peixeiro ambulante, que viajava expressamente a Benguela, para conseguir peixe fresco congelado e assim satisfazer a clientela. O serviço rápido a domicílio tinha lugar quando o combóio ascendente passava junto à casa de cada cliente. O peixeiro, apoiado na barra de ferro que fazia as vezes de porta do vagon onde viajava, tomava balanço e curvado para o exterior, deixava cair a bolsa com o peixe, que rolava no chão até parar. Depois, era só recolhê-la, ao lado da via.
Desde que o combóio chegou ao planalto o sr. Abrantes inventou esta solução pratica para abastecer as famílias ao longo da linha. Na hora de passar o combóio-mala, mal se ouvia, ao longe, o apito, floreado e repetido, avisando da chegada, toda a malta gritava «peixe, peixe... combóio, combóio» e corriamos até nos colocarmos junto à via, numa zona de bastante capim que amortecesse a queda do saco de peixe. Era a festa da semana. Mal o saco partia das mãos do gordo peixeiro, a miudagem celebrava com mais gritos e correrias, a agarrar a encomenda, para entregá-la ao Mestre Estevão que, de longe, supervisava a operação.
Uma vez na posse do bolso, o cozinheiro desatava os nós do cordão, abria o saco e era capaz de reconhecer, à primeira vista e pela cara, de que peixe se tratava. Eufórico com o seu achado, anunciava: «corvina, pescada, cachucho, atum, pungo», enfim, o que fora. Mas, às vezes, em vez de peixe inteiro, vinha peixe cortado às postas e sem cabeça. Neste caso o Estevão não identificava... só dizia... «peixe», deixando a intriga connosco.
Por mera casualidade, curioseando livros, o João Dumbo encontrou no gordo dicionário ilustrado, a figura de uma kianda ou sereia, cujos longos cabelos meio lhe cobriam os seios. Estava sentada sobre pedras e via-se em primeiro plano o seu rabo de peixe. Perplexo, veio perguntar-me se aquilo era mesmo de verdade. Quando lhe respondi que sim, que era mesmo de verdade e que existiam as sereias, declarou logo ali, solenemente, que daí em diante, nunca mais ele voltaria a comer peixe sem ver-lhe a cabeça. – «Afinal – dizia no seu português atrapalhado – tem os pessoa que é os peixe? Não, pôssa. Eu não como mais os peixe que afinal é a mulher». Intrigado e supersticioso, adiantava: - «...assim, se eu não vejo mesmo os cabeça dele, não, eu não como. Sinão, como é que sei se é os peixe ou as pessoa?».
Daí em diante começou a investigar acerca de peixes. Aos poucos foi reunindo dados e ouviu, atentamente, as estórias do velho Kateia, que trabalhara como contratado nas pescarias da Baía Farta e também no Bom Jesus. Foi o Kateia que lhe confirmou a existência do peixe-mulher. Mais. Até lhe garantiu que tinha visto no rio Dande, um peixe mulher. E não era fantasia. Nalguns rios de Angola existe ou existia o manatim, um tipo de «peixe-boi» africano ou mulher-peixe.
Na realidade o manatim ou vaca-marinha é um mamífero aquático que vive nos rios africanos desde o Senegal até ao sul de Angola. Talvez esteja extinto, mas antes aparecia com certa frequência nos rios Longa e Cuanza, que delimitam o Parque Nacional da Quissama, perto de Luanda. Os primeiros exemplares desta família de mamíferos, denunciados pelos relatos de marinheiros, foram avistados nas costas da Venezuela, Guianas e N.E. do Brasil onde também é conhecido como peixe-boi, vaca marinha ou... mulher-peixe. Nalgumas regiões é conhecido pelo nome de «gugong».
O manatim é uma criatura nocturna, cuja cabeça lembra a foca. Possue focinho notoriamente grande e boca notoriamente pequena. Tem os membros anteriores transformados em nadadeiras, carece de membros posteriores e tem cauda horizontal em forma de remo não fendido no meio, identica à cauda dos golfinhos. Família dos manatídeos, pertence à classe dos sirenídeos. A fêmea de peixe-boi nada de costas, segurando, carinhosamente, a sua cria, junto ao peito, com as barbatanas e emitindo gritos de lamento. Admite-se que seria este grito o que fascinou marinheiros que o identificaram como o «canto da sereia». E é bem possível que tenha sido a postura humana destes animais o que deu origem ao mito das sereias.
Em 1992 uma equipa de pesquizadores da União Internacional da Conservação da Natureza disse, no seu relatório, que o manatim africano já não existia nos rios de Angola. Contudo, o naturista sul africano Roger Ballard-Tremeer, que viveu algum tempo em Angola, recusou-se a acreditar nisso e reuniu, nos últimos anos, provas fisicas para demonstar que o manatim africano está bem vivo nos sistemas fluviais do Cuanza e do Bengo. A Fundação do Parque da Quissama, empenhada em preservar as espécies, tem como programa o repovoamento da bela reserva que já existiu ao sul de Luanda. Por isso sobrevive a esperança de que o mítico canto da sereia se volte a ouvir em certas noites misteriosas de África.
Fazedora de mitos, a sereia ainda exerce grande fascínio e temor. Extinto ou não, o manatim sobrevive na fantasia do meu amigo João Dumbo, como o peixe-mulher ou mulher-peixe. Por isso, nem agora, depois de velho, está abalada a sua decisão de nunca comer peixe sem primeiro lhe espreitar a cara... - «Sinão, como é que eu sei se é os peixe ou os pessoa?».
AUXILIAR DE LEITURA:
Combóio Mala – Designação do combóio que transportava as malas do correio. Contratado – Escravo. Eufemismo com que se disfarçava a moderna escravatura na era salazarista. Jindungo – Piri-piri. Pimenta de Caiena. Pimentinho muito picante, que se usa como condimento imprescindivel, na culinária angolana. Pirão – Comida tradiconal angolana. Funji. Espécie de papa, preparada com fuba ou farinha de milho ou de mandioca (neste caso fuba de bombó). * Jornalista angolano - Excerto do livro inédito «Manamafuika» * 2002-11-29

PEIXE DO CAPIM

Os preconceitos alimentares de quem vive no mato longe dos grandes rios ou lagos, marcam a diferença em relação à atitude das populações ribeirinhas que pescam e comem peixe. A pesca em Angola, tal como hoje se pratica, regista muita influencia dos métodos introduzidos pelos portugueses, mas nem sempre foi assim. De qualquer modo, não é da moderna pesca artesanal nem da indústria da pesca que vou ocupar-me, porque a minha idéia é recordar aos mais jovens, antigos métodos da pesca tradicional e velhas estórias de pescarias em épocas passadas.
O litoral, a Sul, era quase desabitado e a pesca no mar fazia-se especialmente no norte do país, onde os habitantes construiam paliçadas nas encostas da praia, utilizando paus de bordão e folhas de palmeira, para beneficiarem do movimento de vai-vem das marés. Na maré vazante, os peixes que penetram no cerco, devido à subida das águas, não podem escapar-se, retidos na precária rede e podem ser agarrados à mão.
Sistema similar ainda se utiliza hoje nos grandes rios do país, especialmente no Cuanza, Cuango, Cubango, Cassai, etc. Este tipo de actividade pesqueira é praticada normalmente pelos homens. São eles que constroem as represas com paus espetados no leito do rio e contra os quais colocam as armadilhas, cestas cónicas de vime, que aprisionam os peixes que circulam ao sabor da corrente. Diferente é a pesca lacustre, estacional e praticada essencialmente por mulheres, que fazem da pesca da «tukeya» uma festa. A «tukeya» é um peixe minúsculo, peixe de chana mais pequeno do que os chamados «joaquinzinhos» e que se encontra na região da Cameia, no leste do país, onde, com as chuvas, se formam grandes lagos temporários e de pouca profundidade.
As mulheres juntam-se em ranchos e metem-se nas águas das lagoas, praticando grandes pescarias colectivas, enquanto cantam e dançam. Trata-se de uma actividade secular, embora as referências escritas sobre esta prática tradicional datem apenas da primeira metade do século XX. As primeiras anotações escritas sobre a «tukeia» pertencem a Don António d’Almeida, com apóstrofe, homem de letras e linhagem, que foi governador do Bié e Luchazes, vasto território que abrangia as superfícies das actuais províncias do Bié, Moxico e Cuando-Cubango.
Amo e senhor desse domínio imenso e ignoto, D. António quiz conhecê-lo palmo a palmo. Investigador, meteu-se pelo mato e pelas anharas que calcurreou. A pé, em tipoia, a boi cavalo, em carro boer, automóvel ou combóio, que já avançava pelas chanas do leste, Don António viajou muito e conheceu bem a região que devia administrar mas não administrou. Quando somou suficiente conhecimento sobre o território que ia governar, já se tinha esgotado o tempo da sua comissão como governador. Desse tempo e dessas viagens ficaram os seus escritos e entre eles anotações da sua passagem pelas chanas da Cameia, lugar de areais e vegetação de meia altura. Nesses relatos refere-se, reticente, ao tema fascinante da «tukeya». Don António escrevia com deleite e era minucioso na descripção de tudo o que observava, mas nem sempre investigava a fundo.
Seria meia manhã quando notou, ao longe, quase sobre a linha do horizonte, a existência de um estranho manto de prata que reflectia a luz do Sol. Era um manto que cobria as bissapas e o capim, numa vasta área. Intrigado com o fenómeno, foi perguntando aos sipaios e logo aos pisteiros, o que era aquilo, luminoso, lá ao longe. Foi aí que o governador ouviu falar pela primeira vez da «tukeya», o peixe da anhara. À medida que a caravana avançava, o manto branco desdobrava-se mais nitidamente no que pareciam peixinhos prateados, incrivelmente empoleirados nas bissapas e no capim.
O cheiro que exalavam era nauseabundo e o assombro de Don António, indescriptivel. Até onde a vista alcançava não existia rasto de água, todo o chão era de areia ou lama seca e gretada, aqui e ali plantado de arbustos entremeados no capim com mais de um metro de altura. O insólito desta paisagem é que os peixes eram peixes de verdade e estavam empoleirados na vegetação. De entre os acompanhantes, os poucos que conheciam ou eram da região, não compreendiam o assombro dos demais e com naturalidade, respondiam, simplesmente, que os peixinhos eram «tukeia». Havia os que permaneciam em silêncio ou conversavam entre si, mas a maioria, sobretudo os carregadores, que chegavam ao lugar pela primeira vez, manifestavam-se curiosos, também, perante a novidade.
Não havendo explicação lógica e à falta de outros elementos, deduziu D. António que estava perante uma espécie desconhecida de peixes voadores, que se haviam reunido, inexplicavelmente, em tão estranho lugar. E assim nasceu a lenda dos peixes voadores das anharas ou dos peixes do capim.

(Leia a seguir «Tukeya o Peixe Voador»).

AUXILIAR DE LEITURA:
Anhara – Savana. Bissapa – ou Vissapa – Qualquer arbusto silvestre. Chana – O m.q. anhara. Savana. Lezíria. Luxazes – ou Luchazes – Nome pelo qual se conhecia uma vasta região do Leste de Angola. Tukeya – tukeia ou tuqueia – Peixe lacustre das anharas do leste da Angola. * Jornalista angolano - Excerto do livro inédito «Manamafuika» *
2002-11-29

CHUVA DE CAJÚ

01*Preciso de começar por algum lado, porque já chegou o tempo da “CHUVA DO CAJÚ”, acerca da qual escreveu o meu amigo e confrade Domingos Van-Dúnem: <...nesse sábado de chuva miúda da rega dos cajús, eramos mais de dez pessoas à volta do Mais Velho...> - (In “Milonga” – pg. 21). primeiro chuvasco aconteceu de surpresa e para os lados de Malanje onde o povo ficou firme, à chuva, mas firme. Molhado mas decidido a não deixar que o venal governador mandasse a parte a botar faladura.
Aproveitando o respeito devido a quem estava ao lado e que era nada menos que o Soba Grande.
Qual nada. A chinfrinada do público pôs termo às pretensões do governador que se julgou rei dos tontos. Uma vez por todas as coisas têm que começar e ser claras.
Chegou o tempo da “CHUVA DO CAJÚ”. Os responsáveis não podem ser responsáveis só de nome. Têm de exercer, de pôr em prática a sua condição de responsabilidade, porque já basta de contemplações, não só ante os abusos, como ante a incapacidade e a irresponsabilidade que caracteriza a maior parte do staff político do país.
Se queremos ser uma nação a sério, temos de desterrar a era do amiguismo tipico africano, que tem de ceder lugar à capacidade, à humildade e à responsabilidade. A “Chuva do Cajú” não perdoa e molha...
02 – A situação de milhões de angolanos é aterradora e precisa-se de ajuda imediata. Contudo, ao que sei, vários embaixadores acreditados em Luanda manifestaram-se reticentes quanto ao apoio que os seus respectivos governos devem dar ao recente apelo das autoridades angolanas solicitando sessenta e quatro milhões de dólares para o programa de assistência aos familiares dos soldados da UNITA aquartelados em várias partes do país.
Alguns diplomatas até disseram não saber como podiam escrever aos seus governos para interceder no apoio a esta iniciativa das autoridades angolanas, devido ao ínfimo valor solicitado. Até houve um que chegou a ironizar: “Só o combate de boxe entre Mike Tyson e Lennox Lewis superou pelo dobro o pedido do Governo”.
Sessenta e quatro milhões de dólares é um montante que não justifica o recurso à comunidade internacional. Parece ridículo que se faça um apelo internacional por esse monto. Pode haver é um erro de valores. Mas, se o cálculo está mal feito, é tempo de se fazerem bem as coisas e proteger-nos da “CHUVA DO CAJÚ”. O ministro responsavel por este erro que nos põe a ridículo, deve demitir-se já. Porquê ? Por causa da chuva. Por incompetência, pah! 2002-11-29