6.4.05

Conversa à luz das estrêlas

Deitar-se sobre o capim seco a olhar as estrêlas, é previlégio das gentes do campo. Nas cidades não existe esta possibilidade. Falta lugar cómodo e sobram as luzes que tiram nitidez ao firmamento. E a culpa é do homem que maltrata o chão onde pisa e tão pouco tem cuidado com o céu para onde olha. Devoro todas as notícias sobre a conquista do espaço e temo que algum até as estrêlas se vão sujar ou vão desaparecer.
Está em execução o grande projecto de engenharia espacial que contempla a construção de um satélite artificial de grandes proporções, formado por módulos unidos entre si. Quando estiver terminada a Estação Espacial Internacional – ISS, teremos no espaço, sobre as nossas cabeças, uma pequena Lua artificial. Milhões de pessoas nunca ouviram falar disso e milhões não ligam importância ao assunto. Também há milhões que não têm, sequer, tempo para olhar para o Céu a observar as estrêlas. Que pena. O espectáculo é belo e grátis.
Milhões de estrêlas desfilam pelo firmamento, comandadas pelo Sol e pela Lua. Sei disto há muito tempo, desde a época em que o meu finado amigo Pedro Chimuko me explicou que a Lua é mais importante do que o Sol. Soba do Capoco, sanzala grande e antiga que faz parte da minha terra do Huambo, no interior de Angola, Pedro Chimuko era um filósofo amante da lógica e de raciocínios profundos: «A Lua – dizia – a Lua é muito mais importante do que o Sol, porque a Lua aparece de noite. Aparece quando faz mais falta, porque não há luz e as estrêlas não chegam para alumiar o caminho».
Nesse tempo, no tempo destas conversas tranquilas de falar só por falar, tinhamos tempo para sentar-nos junto à fogueira do velho Sachitota Sacalumbo, o guarda-noturno da loja do siô Gomes da Xipipa. O guarda-noturno era uma instituição de segurança, garantida pelo porrinho, pouco sono, um kisanje e muita coragem. Sacalumbo era irmão do soba e era amigo do meu amigo o Senhor Neves, o Neves e Sousa pintor, que o pintou em 1960, estampando a sua figura num belo quadro sobre tela, a que chamou «Quissange – Saudade Negra», retomando o título de uma poesia de Tomaz Vieira da Cruz:
«Não sei, por estas noites tropicais, o que me encanta... Se é o luar que canta Ou a floresta aos ais. Não sei, não sei, aqui neste sertão De música dolorosa, Qual é a voz que chora E chega ao coração...
Qual é o som que aflora Dos lábios da noite misteriosa ! .....
................. Sentados sobre um tronco ou numa pedra ou até no chão, petiscavamos, com bolinhas de pirão enroscadas nos dedos, lascas de carapau seco, chamuscado nas brazas. Nesse tempo, as noites escuras eram, seguramente, mais escuras que hoje. Também as estrêlas eram mais, muito mais numerosas do que agora e brilhavam com maior fulgor, porque o ar era transparente e puro, sem reflexos de contaminação. De vez em quando, quando a conversa impunha uma pausa lógica e apetecida, o velho Sachitota agarrava no kisanje para dedilhar temas que improvisava, cantando em surdina, qualquer lenga-lenga que o arrastava para longe, talvez para as estrêlas. E todos nós, os que compartiamos esses serões de natureza e tranquilidade, seguiamos a melopeia e com ela, o vôo errante de alguma fagulha mais duradoira que se escorria da fogueira. Os olhos atrás dela terminavam, também, fixando o céu, a festejar as estrêlas, vagueando pelo espaço como elas, cada um voando, mergulhando em secretos pensamentos. Quando, surpreendente e veloz, uma estrela fugaz riscava a noite, calavam-se as vozes do kisanje e do tocador. Despertavamo-nos da magia da música e contemplavamos no céu esse rasto de luz, dominados pelo deslumbramento do espectáculo celeste. Era apenas um instante, o suficiente para devolver-nos ao mundo da nossa realidade simples e quotidiana. Unanimemente, reconheciamos que já era tempo de dormir. Era tempo de despedir... – «fica bem.... estamos juntos...» e partiamos, levando nos olhos pedacinhos de céu, para que se recostassem connosco, acompanhando-nos em sonhos inocentes e puros.
Sòzinho, responsavel pela sua missão de vigília, apostado em não dormir, o velho Sacalumbo acendia o cachimbo e com ele apertado nos lábios e nos dentes, retomava o kisanje e dedilhava a sua melopeia, infindavel e seca, como o ruido seco das teclas de ferro do seu instrumento.
Cada um regressava a casa para dormir. A imagem do céu ajudava a preparar esse repouso dos homens. Não era como agora em que o céu já não é o céu de Deus e dos Anjinhos, do Sol, da Lua e das Estrêlas, conspurcado como está de poeiras, fumos, lixos e satélites espias. Tenho a certeza de que se eu pudesse voltar a esse tempo, para sentar-me junto à fogueira e contar aos meus amigos Chimuko e Sacalumbo, àcerca destas mudanças ditadas pela civilização, não me acreditariam. Seria uma conversa impossível. Chimuko ficaria calado de raiva e Sacalumbo já não teria matéria de inspiração para cantar, preocupados ambos com a vigilância dos satélites espiões, essa vigilância invisível mas inquietante, oculta durante o dia pelo Sol radioso, disfarçada na noite pelas estrêlas semi apagadas.
Sei que não teria forma de convencê-los de que pés humanos haviam pisado alguma vez a Lua, visivelmente mais pequena do que os próprios pés humanos e sem poder mostrar-lhes, a olho nu, as pegadas que teriam deixado aí, arriscados viajantes de estranhas máquinas voadoras. Pior ainda seria, de poder voltar a esse tempo e a esse lugar, sentar-me junto à fogueira e tentar explicar-lhes que existem homens corajosos, astronautas que caminham no espaço e que instalam entre a Terra e a Lua, uma estação orbital, gigantesca, onde podem viver os cientistas, pessoas, enfim.
A pergunta deles seria tão lógica como a da importância da Lua que ilumina os caminhos nas noites escuras... - «Como é que caminham no ar, em cima de quê ? Em cima do ar ou em cima das nuvens?» Seria ofensivo para eles e vergonhoso para mim, contar-lhes tanta mentira, tantas barbaridades sobre o que faz o homem actual, como, por exemplo, isso de caminhar no espaço e encher o Céu de lixo e de satelites, pequenas luas que nos espiam, que nos vêm a toda a hora e que contam tudo o que vêm....»
Falar-lhes da assombrosa tecnologia deste tempo actual, não seria apenas acentuar as diferenças entre dois mundos. Essa verdade contada hoje à roda de uma fogueira no seio de África, seria tão inverosimil como há meio século atrás, uma inaceitavel conversa à luz das estrêlas. Porque, para todos, seria uma criminosa interferência no milenário diálogo entre os Sábios e os Astros e seria, sobretudo, substimar o real e visivel poder do Sol e da Lua sobre o Universo. Seria... seria uma falta de respeito. Seria menosprezar a sabedoria dos Mais Velhos que ainda hoje conversam à luz das estrêlas...
* JORNALISTA ANGOLANO

------------------------------- AUXILIAR DE LEITURA
Kisanje – ou «quissange» - Instrumento musical africano. Piano primitivo.
Lenga-lenga – Repetição interminavel das mesmas frases ou palavras.
Pirão – Papa dura de farinha de milho ou de mandioca.
Porrinho – Cacete com uma bola na ponta. Pau de atirar.
Sanzala – ou «senzala». Cidade. Aldeia africana.
Soba – Chefe africano. Cacique. Chefe de aldeia. Autoridade tradicional.

5.4.05


Sebastião Coelho Posted by Hello

A Mulemba da Maldição

“...quando a mulemba secar, o Huambo vai desaparecer,destruido pelos seus próprios filhos. E as riquezas do solo não serão para ninguém...”
(profecia de ALBANO CANTO DOS SANTOS, nos anos 20)
Nasci noutro bairro, mas, durante certo tempo da minha adolescência, vivi ao lado do campo de futebol do Sporting do Huambo. A minha rua estava coberta de jacarandás. Quando floresciam, lançavam sobre o pavimento um manto de flores lilazes, que amanheciam orvalhadas e estalavam, fofas, debaixo dos pés. Gostava de ver os jacarandás vestidos de flor, quando perdiam todas as folhas e as pétalas chuviscavam sobre as nossas cabeças, abanadas pelo vento suave do entardecer. Depois, já murchas, aninhavam-se ao longo dos muros em extensos cordões, deixando lugar para as flores novas. Eram milhões de flores que caiam em cada dia, as árvores envaidecidas a mostrar, cada uma delas, a sua pujança de vida.
Do outro lado da rua e além do aterro por onde passa o combóio, seguro de si e do seu caminho, estava o roseiral, acompanhando a via, encaixado entre esta e os cedros da sebe. Ultrapassado o muro verde, estendia-se, interminavel, no sentido este-oeste, a avenida do Colete. Do colete, porque todas as casas estavam só de um lado. Incluindo a Igreja Catedral, que estava em construção. As árvores da avenida eram acácias, que também brincavam de primavera, mas não perdiam as folhas, que pareciam mais verdes quando os ramos de flores brancas, amarelas, vermelhas ou alaranjadas, espreitavam pelo meio, a encher o ambiente de cores e olores.
O festival das rosas desafiantes de orgulho e de perfume, acompanhava a avenida para um lado e para o outro. A caminho da alta, logo depois da passagem de nível, havia um pequeno bosque e a seguir, os olhos embrenhavam-se no mundo dos cosmos, espectacular mancha de cores amontoadas de flores garridas que nem paleta de Matisse. Sem perfume, mas de grande beleza. A avenida 5 de Outubro, a tal do colete, nascia na baixa, na continuação da estrada da Pauling e São João e terminava na alta, no cruzamento próximo das casas do Samacaca, onde se dividia em duas.
Quem tomasse pelo lado esquerdo, desfilando ao longo das casas do Samacaca , desembocava nos anéis concentricos do jardim da alta. Continuando para a direita, ali perto estava o edificio do velho Teatro Peairo , que o tempo transformou na “Fábrica de Moagem”, onde tinha início a avenida Ferreira Viana, ladeada de casuarinas. Mas abaixo desenrolava-se o projecto de avenida, sem nome e sem casas que terminava cruzando para o outro lado da linha do CFB, para transformar-se na estrada da Caála. Também era o caminho do Matadouro e o caminho do Cemitério.
Foi aqui, entre o Matadouro e o Cemitério, que eu nasci, numa pequena chitaca dos arredores da cidade. Era longe para irmos ao “Ambo”, como diziamos, embora nesse tempo já se chamasse Nova Lisboa. Durante anos fiz esse percurso de muitos quilómetros, a pé ou em bicicleta. A alternativa era usar a berma da linha do combóio, que estava proibida para bicicletas. Ou, então, a pé, por um carreiro de gentio, atravessar a sanzala do Karilongue e descer e subir as empinadas encostas do rio, que se cruzava a vau. Ir e voltar do “Ambo” era uma viagem longa e cansadora de três a quatro horas, segundo a pressa e as pernas de cada um.
Nova Lisboa foi o nome com que a rebatizou o coronel Vicente Ferreira, ao decidir que a capital de Angola devia situar-se nesse ponto estratégico do Planalto Central. A lei ou portaria com a transferência de nome e da capital surgiu no Boletim Oficial no dia 21 de Setembro de 1927. Desde aí, esta data tornou-se o dia da cidade que só foi capital no papel, mas sempre foi cidade, porque nasceu cidade, a 12 de Agosto de 1912, por decisão do Alto Comissário da República Portuguesa, general Norton de Matos.
Acabava de chegar ao lugar o que seria o grande impulsor do progresso da região, o Caminho de Ferro de Benguela. Para celebrar o acontecimento, o general deslocou-se ao Huambo a fim de anunciar, pessoalmente, “in loco”, a fundação da nova cidade. Ele mesmo, de pé, sobre a tarimba montada frente ao barracão pomposamente designado gare ferroviária, leu o auto fundacional, na presença dos primeiros habitantes europeus da cidade, dois homens e uma mulher. Logo a seguir e ali mesmo, o Alto Comissário lhes entregou, em mão, o rascunho da planta da nova urbe, traçado pelo seu próprio punho.
Dados geográficos, orográficos e hidrográficos de notavel precisão documentavam o projecto. A cidade seria implantada a sul da ferrovia, alcandorada sobre a linha divisória de águas da região. Não registava nenhum povoado nesse lugar e apenas dava conta da existência de uma incipiente mina de diamantes. As sanzalas importantes, pertencentes ao forte sobado do Huambo, estavam anotadas e dispersas pelos arredores. Havia a embala do soba grande da Kissala, a duas léguas a ocidente, a do sobeta Sanjepele, três léguas ao norte e a do Sumi, a umas cinco léguas a sul.
As sanzalas do Kalumanda, Karilongue, Kanhé, Kakeléua, Sakaála, Mukolokolo, Bomba e outras por aí, apareceram depois e foram bairros periféricos com entidade própria e nenhum aspecto de musseque . Os deterioros e a expansão incontenivel, são posteriores a esse tempo de que vos falo, quando o Paulino leiteiro ainda ia de casa em casa para entregar as bilhas de leite fresco. A lenha e o carvão chegavam na carroça do Sô Domingo, avisando: -“Toc, toc, toc. Cravão, cravão. Toc, toc, toc. Cravão, cravão-mé-sióra !”. O rio da Granja era rio de água cristalina, que regava as hortas do Figueiredo e dava nome à única via alternativa entre a alta e a baixa. O grande “boulevard”, de duzentos metros de largura, era tão amplo que a vista curta das autoridades não suportou o desafio e o reduziu a um quarto.
A cidade, desenhada em meia lua, contemplava, em cada ponta, um centro cívico. No meio, o enorme vazio de tudo, estava reservado a projecto futuro. Tudo era futuro na futura cidade de concepção nortoniana, de particular generosidade nos espaços. Os bairros, distantes uns dos outros, levariam tempo a unir-se, até conformarem, algum dia, a grande e moderna urbe, sonhada. Por enquanto, era um punhado de bairros à espera de serem uma cidade, dominada por zonas verdes e praças enormes.
Tamanha perspectiva de espaço era demasiada para a mesquinhez dos homens sem horizonte que, mais tarde, tornaram mesquinhas essas dimensões, adulterando planos e inventando bairros de ruas estreitas e tortuosas como as suas mentes. O pior crime foi cometido na praça do Jardim da Alta. Desenhada no terreno com a forma de jarrão chinês, era incomensuravel. Foi amputada em três quartos da sua dimensão original, os três quartos de amplitude que, sobravam, ao que parece, em toda a parte. Do recorte escapou o jardim e o pequeno largo fronteiro ao palácio do governo.
No resto do espaço edificaram-se repartições públicas. A monumental “Praça Maior” foi reclassificada como terreno baldio, onde se construiu o famigerado palácio do governo. A idéia de Norton era debruçar a cidade sobre o anfiteatro natural do vale do Kussava. As improvisações posteriores, voltaram tudo de pernas para o ar e o casarão colonial foi erguido ao contrario, de frente para o Jardim da Alta. Deste modo, as trazeiras do prédio ocuparam o lugar de previlégio em relação ao belo panorama do morro do Soque e dos vales da bacia do rio Kussava, mas sem janelas para disfrutar da vista.
O melhor ponto de observação para este horizonte sem limites, era o vértice da velha mina de diamantes, lugar que, com as transformações, ficou localizado, irracionalmente, atrás do palácio. Desse miradouro privilegiado apenas sobrou, como ponto de referência, uma mulemba, isolada, à beira da falésia, quando desapareceram os vestígios das ruinas de paredes de adobe que, alguma vez, foram as paredes brancas da casita de um tal Albano, português de origem misteriosa, culto e mítico, de carácter obstinado e ambicioso, ao que parece.
Pela fala das gentes, repetindo o contado pelos “Maisvelhos” de larga memória, ele teria sido o primeiro homem branco a instalar-se na zona. Amigado com uma filha de soba, o tal Albano, cujo apelido era Canto Dos Santos, gozava de excelentes relações, que lhe facilitavam obter mão de obra para os diamantes, de cuja existência falavam os antigos. Com os anos, as paredes da mina abandonada, foram suavizadas pela intempérie e nelas cresceu o capim e mais tarde, também as árvores de fruto que o gordo Cochat plantou, aproveitando o terreno vazio.
Fascinado pelas tradições nativas, fascínio que o convívio de anos reforçou, Dos Santos ouvia conselhos de sekulos e utilizava feitiços e sabedoria de kimbandas , para apressar a descoberta de gemas. Na previsão do futuro e em alusão directa à origem da esposa, plantou com as suas próprias mãos, ao lado da casa, um símbolo de poder, a estaca de mulemba que em poucos anos se transformou numa árvore pujante. E dizia, para quem quizesse ouvi-lo: – “Esta mulemba de soba, é para quando o meu filho for soba”...
Entretanto, com os anos e as tragédias que sucederam por ali, os sonhos esfumaram-se e nas trazeiras do palácio que a guerra partiu, perdida no matorral sobranceiro à linha do comboio e ao lado da casa do capataz, vicejou durante anos a que foi a árvore da esperança. Não sei se ainda existe, mas gostaria de saber. Conta a lenda que, desiludido, foi sobre essa mulemba, que o português Albano rogou pragas à cidade e seus habitantes actuais e futuros. Ninguém se perturbou, então, com as imprecações e todos se riram da profecia e olvidaram o pobre lunático.
E a cidade continuou a sua estória de pequeno burgo em crescimento. O Viegas padeiro distribuia o pão quente em bicicleta. O Bento Agria, o “Faísca” arranjava e alugava bicicletas. Carro de praça havia dois. O do Almeidinha carpinteiro e o do Largo, molengão, para todo o serviço sem pressa. Só mais tarde o Loção Caçador, o Bessa Alfaiate e o Justino Relojoeiro viraram taxistas. Chupa-chupa gostoso era fabricado pelo Antunes da Bébé-Sadio. O kitandeiro da Juleca continou a vender kitutes de casa em casa.
O dr. Eurico era o médico dos pobres. Mas quem sabia mesmo curar o maculo era a velha Quartin, com pomada de pó de raizes, que ela metia a dedo, tufa, tufa, no ânus dos meninos. A generosa irmã Candida também curava o maculo dos adultos, espetando-lhes as hemorróidas com agulha de ouro, até ao dia em que alguém morreu e aí mandaram ela embora. Cirurgião de confiança era mesmo o Dr. Parsons, da missão do Bongo. Médico famoso para doenças de mulher só o dr. Strangwei, da missão americana da Chissamba.
Nesse tempo desta recordação, o único fotógrafo de verdade era o Costa Melo, que sempre usava laço sobre colarinho engomado. Armava as suas próprias películas numa caixa “à la minute” e no momento de actuar, levantava a mão e avisava o cliente: -“ai vai, olha o passarinho”. E zás, fusilava um “flash” de puro magnésio. Já nessa época tinha carro, um incrível Ford Pontapé, com faróis a carboreto e capota de lona, segura aos guarda-lamas por correias de couro e fivelas de bronze.
O Baptista era o livreiro “sui generis” do burgo. Não sabia ler nem escrever, mas vendia livros. Vendia literatura a peso, sopesando os livros com a mão. E nunca faliu. Ao lado da livraria, sempre aberta, porque aí se encontravam instalados os bilhares, estava o bar. No bar do Baptista reuniam-se as eminências da cidade, a tomar “saloios”, por whiski, uma mistura barata de conhaque e soda. Ao fim da tarde caiam o Papa Leonardos, um grego ricaço, contrabandista de mão de obra para o Bom Jesus ; o Cunha Lima, director da Kapa, homem de sangue azul e modos finos; o Miguel Nepomuceno, advogado e garanhão do povo, o Horácio D... e o Correia da S..., cornudos de profissão; o Abel, velho aspirante a intelectual e o velho Tavares Kapoko, intelectual de verdade e toda a outra fauna que integrava o zoológico da cidade, incluindo o Tubarão, o gordo “Tubarão Mendes – Tabelião”, como rezava a placa do notariado.
O bairro de Benfica ainda era conhecido pelo Bairro das Facadas e a Maria Cuanhama era a prostituta mais famosa da cidade. As casas desse tempo eram de rés-do-chão, excepto os saparalos da Belport, Neves Coelho, Anibal Branco e o Bona Amikeko, de recente construção. O Albano Canto dos Santos já era só lenda, como os legendários Cara Fatal e o polaco Chamiço , hóspede eterno do hotel Chifuanda, porque não pagava a conta, acumulada em cadernos de fiados.
Figuras tipicas da rua eram o Boca Torta e o Baco-Baco, o Polainitos e a gorda Laura Pepe, o Zé Arquimedes, cego e mestre d’obras que “via” quem não trabalhava e lhe jogava logo porrada. E o inconcebível Anibal Dias, o Kamutar, que se apoderava de qualquer bicicleta, fazia o que tinha que fazer e a abandonava, depois, onde calhava. À parte isso, era um passeador tagarela e incansavel. Folclórico, sempre de colete sobre a camisa, conversava com todo o mundo, mas tinha os olhos postos no chão, investigando e afoito para levantar algum prego, ou torca ou parafuso perdido. Também juntava cordéis, que atava uns aos outros. Havia quem caminhasse à frente dele para atirar cordelinhos para o chão. Diziam que em casa guardava uma descomunal bola de barbante, mas nunca ninguém viu.
Quando a cidade cresceu um pouco, o Gilberto de Mascarenhas publicou o jornal “A Voz do Planalto”, que introduziu no burgo a novidade da necrologia. Gente importante entrava na necrologia vestindo caixão de mogno do Juvenal. Povo era só embrulhado em kambrikite e buraco com ele. O primitivo cemitério era em Cacilhas, terreno sem muros onde as onças escavavam carne fresca. Por isso a Câmara mandou construir o cemitério novo, com muros altos e caiados. Mestre Franco, mestre d’obras encartado e responsavel, ocupou-se dos trabalhos e não arredou pé, nem quando o cemitério ficou pronto, porque o designaram encarregado. Faleceu no dia da inauguração e deram-lhe um lugar permanente, para não dizer vitalício, quarteirão um, campa um. E ganhou juz a uma placa que diz, “aqui jaz”. Paz à sua alma.
Inaugurada a nova necrópole, o campo sagrado de Cacilhas foi desactivado. Não houve mais enterros e muitos anos depois, o clube Mambroa aproveitou aquele terreno liso, para transformá-lo em campo de futebol. Dizem que, nos primeiros tempos e nas noites escuras, as almas penadas saiam a protestar. Depois, saiam a jogar a bola com entusiasmo, porque se ouviam estranhas ovações quando algum cazumbiri metia golo e festejava o supergozo da modernidade, o futebol. Talvez um desses cazumbiris se chame Dos Santos. Teria sido enterrado ali por volta de 1920, em campa raza, castigo dos suicidas, porque, os que se diziam seus amigos, não respeitaram a sua última vontade, a de ser sepultado noutro lugar.
As imagens que recortei e descrevi da primitiva cidade que me viu nascer, acompanham-me agora como um postal de esperança, seguro de que não há guerras que sempre triunfem sobre a paz. E que não há males que nunca terminem. E que as pragas também se diluem com o tempo. Não sei, não vi, mas dizem as notícias que o Huambo de hoje é um campo de destruição e silêncio. Não quero acreditar em maldição ou mau olhado. Por isso gostaria muito de voltar à minha cidade natal, para espiar lugares que conheci. Há vinte e cinco anos que não vou ao “Ambo”. Há vinte e cinco anos que os génios do mal se encarniçam sobre a cidade.
Queria lá voltar para ver o que sobra das minhas recordações e investigar um pouco acerca do legendário Albano Canto Dos Santos, que não conheci. Acerca deste homem que escrevia versos e tocava guitarra ao luar, os “Maisvelhos”, que já não estão, contavam que foi ele o verdadeiro fundador do Huambo e foi muito antes da chegada do combóio. E pode ser. O aterro onde assentam os carris, tapam parte do enorme buraco que ele mandou escavar, conhecido então pelo buraco grande, tão grande que terminou sendo nascente do rio Karilongue, que dali serpenteia até ao Soque, onde lança e mistura as suas águas diamantiferas, com as pepitas de ouro que arrasta o rio Kussava.
Sei, pela insistência dos relatos que ouvi, que o branco Albano, entusiasmado pelos brilhos que iluminavam as estórias fantásticas de povos e riquezas do tempo do Kaparandanda, instalou-se sobre a colina dos tesouros e mandou construir a casita, de cuja porta podia vigiar o pessoal, cavando e cavando na mina, de sol a sol. Foram dias monótonos até aquela madrugada dos anos vinte. Sentado na kangalanga , a tradicional cadeira de viagem, Dos Santos tomava café e olhava o mundo à volta e o buraco da sua esperança. De repente, como numa alucinação, viu como os primeiros raios de sol iluminaram diamantes na profundeza do buraco. Os diamantes reflectiram o sol e Dos Santos pensou num milagre. Louco de alegria,. desceu, correndo, à mina. Mandou sair o pessoal, ajoelhou-se no chão e agarrou as primeiras pedras, que guardou num lenço.
Saiu gritando que ninguém baixasse ao lugar e foi, directo, à farmácia do Martins, seu velho amigo e confidente. Em segredo mostrou-lhe a colheita. Martins, profissional atento, verteu alguns liquidos em vários recipientes e jogou lá dentro as pedras do Albano. E a reacção foi positiva. – “São diamantes !”, prognosticou. – “Diamantes de primeira água !”.
Eufórico, Dos Santos não cabia em si, de contente. Nesse dia a mina permaneceu fechada, com guarda à vista. A notícia correu célere pela cidade. À noite houve festa de arromba, paga pelo novo rico. No final do ágape, condoído com tanta ingenuidade e generosidade, alguém lhe contou a verdade. Os diamantes eram vidros que os amigos, combinados com o farmacêutico, tinham espalhado no lugar, para o gozarem. Albano envelheceu de repente. No dia seguinte a mina continuou fechada e assim aconteceu por vários dias mais.
Dos Santos mandou a mulher embora, fechou-se em casa e não respondeu aos amigos que o visitaram. Em pouco tempo estava completamente louco. Subia à mulemba, sentava-se nos ramos mais altos e ficava a olhar a mina. Deixou de comer e uma noite enforcou-se.
Na carta, delirante e profética, que escreveu e que teria sido encontrada junto ao tronco da árvore, pedia para ser enterrado ali, ao lado da mulemba, pois, se assim não acontecesse, a sua alma, inquieta, voltaria para vingar-se: “... e quero o meu corpo a alimentar as raizes da árvore que eu plantei, quero que os meus sumos penetrem nesta terra e se juntem, lá embaixo, com as riquezas que não encontrei, mas que existem. Com elas sonhei transformar este país rico e de gente pobre, num rico país para toda a gente. Sonhei ver o meu filho mulato Pedro Evango, feito soba do Huambo, sentado à sombra deste pau sagrado, criar uma nação próspera e feliz, mistura de várias raças. Fui atraiçoado pela pior traição, a traição dos amigos e da confiança. Se me atraiçoarem de novo, saibam que esta mulemba vai secar e quando a mulemba secar, o Huambo vai desaparecer, destruido pelos seus próprios filhos. E as riquezas do solo não serão para ninguém... tudo será ruina e desolação !”
Há vinte e cinco anos que não consigo viajar ao Huambo para verificar o que aconteceu com essa mulemba da maldição, à sombra da qual me sentei muitas vezes, a contemplar a paisagem que ninguem quiz resguardar. Temo ser o último sobrevivente desta estoria onde mito e realidade se confundem e estar, também, abrangido pela maldição. Um filho da terra ordenou o holocausto. A cidade está destruida. Não sei, não vi, não creio em bruxas, “pero, que las hay, las hay”.

Kota Kandimba

Sebastião Coelho nasceu em Nova Lisboa, cidade fundada por Norton de Matos, hoje denominada de Huambo. Jornalista conhecido pela sua frontalidade foi também um nacionalista angolano que marcou o seu tempo. Adorado por uns, amaldiçoado por outros, mas por todos reconhecido como tendo uma escrita e um dizer fluente, foi um radialista de grande mérito.
O desacordo com o rumo dos acontecimentos da política de Angola, que ele ajudou a ser independente, e que por ela foi preso e privado de seus direitos, fizeram-no partir para a Argentina engrossando a diáspora de angolanos. Aqui passou cerca de dez anos e aqui morreu, depois de umas semanas antes ter sido convidado a ir a Angola, e onde visitou a sua terra Natal, depois de quase vinte anos de ausência. O grau de destruição da cidade, resultado da insanidade mental dos senhores da guerra, acaba confirmando a maldição da mulemba, onde, segundo a lenda, a cidade será destruida por um seu filho. E foi-o.
Sempre tive pelo meu primo Sebastião uma ternura especial, por ele retribuida ao longo de muitos anos em que nos fomos mantendo em contacto. Perdi-lhe o contacto quando foi para a Argentina, mas graças a esta maravilha da tecnologia, chamada de internet, acabamos por nos reencontrar e trocar algumas linhas. Mandou-me todos os seus escritos, e lisonjeou-me um dia ao enviar-me um rascunho de uma conferência que iria fazer sobre pintura generativa de Eduardo Mac Entyre de inspiração na arte africana primitiva. Era um excelente conversador e passámos uma longa noite em família, a última, recordando coisas de Angola e da família.
Depois da visita que fez ao Huambo falámos telefónicamente pela última vez. Disse-me com muita tristeza o que vira, e da sua casa, na rua dos jacarandás, encontrara apenas o chão.
Estas são algumas das suas crónicas, algumas disponíveis isoladamente em sítios da internet, mas que aqui queremos reunir, permitindo com este blogue que possam ser adicionados comentários. Esta acção que muito gostosamente faço, teve o prévio acordo de sua mulher Isabel.